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ENCHENTE

1/26/2015




Na ilha do Meio as casas de farinha estavam em plena atividade. Na beira do rio, homens, mulheres e crianças com balaios e gamelas aguardavam as canoas abarrotadas de mandioca, para subir o barranco e  transportá-las até à casa de farinha.

Ali, as mulheres sentadas sobre as pernas, em esteiras no chão, raspavam e descascavam as raízes, ou manivas, com o auxílio de facas, algumas cegas, outras afiadas. Tagarelavam. Cantavam ou contavam histórias e causos de assombração, do nêgo d’água, de romãozinho, das visagens,  de dinheiro enterrado,  dos sonhos,  de pesadelos e dos costumeiros incidentes ou acidentes do lar.


Na oficina de farinha acumulavam-se vasilhas de barro, além dos cochos onde se colocavam as massas, depois de cevadas.

O cevador transformava a raiz da mandioca em massa, numa espécie de Lei de Lavoisier: “Na beira do rio nada se perde, nada se cria... Tudo se transforma”.
A roda grande do moinho, com duas manivelas, era acionada por quatro homens de troncos nus, cantando toadas e desafios, a beberem cachaça catuzeira ou pingado de vinho jurubeba:

Subi no céu de Deus
Na zoada do trovão
Desci nas cordas da chuva


Com dois coriscos na mão...

Transformada a mandioca em massa, que ia para a prensa de madeira a ser secada, liberava-se o suco venenoso, quando, então, era  levada ao forno.

Os fornos de barro, fechados na parte superior com lages,  espécie de ladrilho , sob as quais a massa se transformava em farinha. O forneiro manejava o rodo com grande habilidade e rapidez numa plataforma de argila, à medida que a farinha ia se torrando. Da água da prensa, que deixavam decantar a massa úmida da mandioca, aparecia a goma ou tapioca para se fazer o beijú, herança culinária dos nossos antepassados índios tapuias que habitaram o vale são franciscano.

Naquele mesmo ano, a enchente chegou impávida a Xiquexique, a devastar a ilha do Meio, afogando o resto da plantação e submergindo outros ilhotes e ilhas, tais como: Amarra Couro, a ilha do Povo, da Pestana, do Paulista, Saquinho e a ilha do Mendonça.

Xiquexique experimentava uma inundação sem precedentes.  As ruas paralelas à ipueira, a exemplo da outrora badalada rua do Peráu reduto antigo  das meninas sapecas, das fogosas raparigas  da “casa de Lúcia”,  encontravam-se desabitadas, porque o casario do Peráu foi invadido pelas águas barrentas transformando-o em ruínas. 

A molecada, as mocinhas, as donzelinhas trigueiras e a rapaziada, os galalaus folgados, não se davam conta dos prejuízos que acarretariam mais uma inundação; alegravam-se , paradoxalmente, com a tragédia, na perspectiva da possibilidade de haver festas de forró, do arrasta pé, do rala-bucho ou de brincadeiras ruidosas, apesar da  desolação das ruas submersas.
Praça do Pirulito, hoje praça da Caldeira-Foto Juarez Chaves


Barcos a motor e paquetes a remo navegavam por entre as ruas e ancoravam na antiga praça do Pirulito, hoje praça da Caldeira ou, se quiserem, a oficial praça 6 de julho. Outras pequenas embarcações subiam pela avenida J.J. Seabra, até às cercanias do beco que dá acesso à rua Castro Alves.



A população, unida pelo infortúnio, adaptava-se à promiscuidade das barracas de lona que pareciam anárquicos acampamentos de ciganos, lutava para salvar parte de suas lavouras à margem do rio, tão precipitadamente sacrificadas. O Velho Chico transformara-se numa vertigem de afogamento e de submersão, cujos efeitos são sentidos até hoje porque estão estampados no “cais”, no irritante monstrengo que descaracteriza a orla fluvial da cidade.

A ilha do Meio não tem mais as casas de farinha. Lá, como em outras ilhas do arquipélago xiquexiquense, alguns aventureiros quiseram, até, substituir a plantação de mandioca por plantações mais lucrativas nas sobras da ilegalidade que ainda subsiste nesse agronegócio. Mas este é assunto para outro dia, quando abordaremos alguns aspectos atuais da República Oriental do Uruguai.

Nilson Machado de Azevedo



3 comentários:

Maria da rua Monsenhor Costa disse...

Nilson Machado, não posso dizer que não gosto quando você posta assuntos de política. Gosto, sim. Mas quando você publica as suas crônicas , vc se supera!
Essa crônica da Enchente é a apoteose para quem viveu essa época em Xique-Xique. 1980. Eu tinha 15 anos e não era uma "donzelinha trigueira". Eu era e sou loira, de olhos azuis. Que tal? kkk... Meus parabéns conterrâneo.

19/1/14 13:48
Anônimo disse...

Môsso, e tu era assim raparigueiro frequentador dos brega da rua do perau?
Soube por um contemporãneo seu que vc ia muito era no Cabaré de Lourenço. lá perto do antigo campo de avião. onde hoje funciona o hotel carranca.

19/1/14 14:16
Paulistana de Moema disse...

Adorei isso tudo, embora eu seja paulistana que Nilson Machado critica tanto, mas eu perdÔO porque isto é coisa de intelectuais. Eles Vivem no mundo da lua.

19/1/14 16:36

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