Na
ilha do Meio as casas de farinha estavam em plena atividade. Na
beira do rio, homens, mulheres e crianças com balaios e gamelas aguardavam as canoas
abarrotadas de mandioca, para subir o barranco e transportá-las até à casa de farinha.
Ali,
as mulheres sentadas sobre as pernas, em esteiras no chão, raspavam e
descascavam as raízes, ou manivas, com o auxílio de facas, algumas cegas,
outras afiadas. Tagarelavam. Cantavam ou contavam histórias e causos de
assombração, do nêgo d’água, de romãozinho, das visagens, de dinheiro enterrado, dos sonhos, de pesadelos e dos costumeiros incidentes ou
acidentes do lar.
Na
oficina de farinha acumulavam-se vasilhas de barro, além dos cochos onde se
colocavam as massas, depois de cevadas.
O cevador transformava a raiz da mandioca em massa, numa espécie de Lei de Lavoisier: “Na beira do rio nada se perde, nada se cria... Tudo se transforma”.
A
roda grande do moinho, com duas manivelas, era acionada por quatro homens de
troncos nus, cantando toadas e desafios,
a beberem cachaça catuzeira ou pingado de vinho jurubeba:
Subi no céu de Deus
Na zoada do trovão
Desci nas cordas da chuva
Com dois coriscos na mão...
Transformada
a mandioca em massa, que ia para a prensa de madeira a ser secada, liberava-se
o suco venenoso, quando, então, era levada ao forno.
Os
fornos de barro, fechados na parte superior com lages, espécie de ladrilho , sob as quais a massa se
transformava em farinha. O forneiro manejava o rodo com grande habilidade e
rapidez numa plataforma de argila, à medida que a farinha ia se torrando. Da
água da prensa, que deixavam decantar a massa úmida da mandioca, aparecia a
goma ou tapioca para se fazer o beijú, herança culinária dos nossos antepassados índios
tapuias que habitaram o vale são franciscano.
Naquele
mesmo ano, a enchente chegou impávida a Xiquexique, a devastar a ilha do Meio,
afogando o resto da plantação e submergindo outros ilhotes e ilhas, tais como:
Amarra Couro, a ilha do Povo, da Pestana, do Paulista, Saquinho e a ilha do Mendonça.
Xiquexique
experimentava uma inundação sem precedentes.
As ruas paralelas à ipueira, a exemplo da outrora badalada rua do Peráu
reduto antigo das meninas sapecas, das fogosas
raparigas da “casa de Lúcia”, encontravam-se desabitadas, porque o casario
do Peráu foi invadido pelas águas barrentas transformando-o em ruínas.
A
molecada, as mocinhas, as donzelinhas trigueiras e a rapaziada, os galalaus
folgados, não se davam conta dos prejuízos que acarretariam mais uma inundação;
alegravam-se , paradoxalmente, com a tragédia, na perspectiva da possibilidade de haver festas de forró, do arrasta
pé, do rala-bucho ou de brincadeiras ruidosas, apesar da desolação das ruas submersas.
Praça do Pirulito, hoje praça da Caldeira-Foto Juarez Chaves |
Barcos a motor e paquetes a remo navegavam por entre as ruas e ancoravam na antiga praça do Pirulito, hoje praça da Caldeira ou, se quiserem, a oficial praça 6 de julho. Outras pequenas embarcações subiam pela avenida J.J. Seabra, até às cercanias do beco que dá acesso à rua Castro Alves.
A
ilha do Meio não tem mais as casas de farinha. Lá, como em outras ilhas do
arquipélago xiquexiquense, alguns aventureiros quiseram, até, substituir a
plantação de mandioca por plantações mais lucrativas nas sobras da ilegalidade
que ainda subsiste nesse agronegócio. Mas este é assunto para outro dia, quando
abordaremos alguns aspectos atuais da República Oriental do Uruguai.
Nilson Machado de Azevedo
3 comentários:
Nilson Machado, não posso dizer que não gosto quando você posta assuntos de política. Gosto, sim. Mas quando você publica as suas crônicas , vc se supera!
19/1/14 13:48Essa crônica da Enchente é a apoteose para quem viveu essa época em Xique-Xique. 1980. Eu tinha 15 anos e não era uma "donzelinha trigueira". Eu era e sou loira, de olhos azuis. Que tal? kkk... Meus parabéns conterrâneo.
Môsso, e tu era assim raparigueiro frequentador dos brega da rua do perau?
19/1/14 14:16Soube por um contemporãneo seu que vc ia muito era no Cabaré de Lourenço. lá perto do antigo campo de avião. onde hoje funciona o hotel carranca.
Adorei isso tudo, embora eu seja paulistana que Nilson Machado critica tanto, mas eu perdÔO porque isto é coisa de intelectuais. Eles Vivem no mundo da lua.
19/1/14 16:36Postar um comentário
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