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A violenta segregação social no carnaval de Salvador

2/18/2015



Para começo de conversa, o carnaval de Salvador já não é de Salvador. De acordo com as estatísticas, apenas 22% dos soteropolitanos participam dele. Mas de modo desigual, é preciso que se diga. Pois muitos participam da grande festa sem festejar, ou seja, trabalhando em condições mais que precárias: uns, na condição servil de “cordeiros”; outros a espremerem-se pelas ruas, vendendo cerveja e petiscos miúdos, enfeites etc; ou ainda catando latas dia e noite. 


Em Salvador você tem duas opções para brincar o Carnaval: ou se gasta uma fortuna para bancar a privatização da folia ou se vive uma popcorn experience sendo esmagado do lado de fora da avenida, onde a sensação é a mesma de se sentir um dejeto humano, apanhando da polícia e dos seguranças do cordão de isolamento.

A miséria dos “cordeiros” é explorada de forma obscena e a triste instituição do bloco de cordas se mantém ano após ano com o beneplácito das nossas autoridades, decerto empenhadas em honrar as tradições escravistas da Bahia. Os amos do bloco até alegam que com isso oferecem uma oportunidade de ganho a pessoas necessitadas.
A espantosa pobreza de Salvador, fruto de desgoverno e insensibilidade social, recruta facilmente homens e mulheres para esse tipo de trabalho. 




É ela também que leva famílias inteiras a dormir na rua durante a bela festa, sacrificando-se para obter um pequeno aumento de suas rendas com um inseguro comércio. Para isto fazem vigília no tumulto carnavalesco; dormem pelas manhãs na promiscuidade e na sujeira, nas calçadas ou nos escassos gramados, entre bêbados e lixo. Ou em barraquinhas improvisadas que tomam calçadas e bloqueiam a entrada de inúmeros prédios na Barra e Ondina, por exemplo.

Há o turismo que enche os hotéis; há os promoters, donos de blocos e de camarotes, as cervejarias e seus propagandistas. Os trabalhadores qualificados do carnaval têm seu ganho muito suado… quando não levam calote, como acontece frequentemente com músicos contratados pelo município, cujas queixas ecoam por meses na imprensa. Também os “cordeiros” são com frequência caloteados.

No carnaval de Salvador já se cometeu todo tipo de asneiras, inclusive já aconteceu   uma declaração da cantora Cláudia Leite que caracterizou os dois principais circuitos da folia soteropolitana, a partir dos respectivos públicos: segundo ela, na Avenida Sete – Campo Grande predomina o povo, já no circuito Barra – Ondina predomina a "gente bonita". 

Sórdido racismo e grosseiro preconceito classista transparecem na declaração, fruto da involuntária e irrefletida sinceridade da “estrela”, equiparável à inconsciente (e momentânea) franqueza do prefeito. Mas o que a cantora boquirrota verbalizou está bem arraigado no modo de pensar da minoria hoje hegemônica no carnaval da Boa Terra. A “gente bonita” é a que veste os disputados abadás, protege-se com as cordas e dos corpos de pessoas carentes do povo e se diverte seguindo seus enormes trios nos blocos privilegiados. 

A propósito, recorde-se o que dizem os felizes mercadores do carnaval baiano: 80% desses abadás são vendidos para turistas, para gente de fora.Mais uma evidência de que o famoso carnaval de Salvador já não é de Salvador.

Tampouco se pode dizer que esta é  uma festa popular. Basicamente é uma festa de gente rica que tolera marginalmente uma fatia do povão. Fotos eloquentes mostram a distribuição desigual da folia soteropolitana: em camadas espremidas nas margens, gente negra ladeia o grande rio branco de foliões privilegiados. O nosso vergonhoso apartheid se faz transparente nessas cruas imagens.

É a maior e mais descarada das mentiras dizer, portanto, que o carnaval de Salvador é uma festa popular que  é festa do povo para o povo. É coisa nenhuma! Carnaval virou festa para meia dúzia de gatos pingados e cheios da grana que se esgueiram nos camarotes com suas expressões de nojo quando voltam o olhar para a ralé presa ao chão. Chegaram ao vexatório ponto de transformar uma festa genuína, essencialmente cultural num coral de vozes estrangeiras que mal sabem cantar, mas que lotam as suítes dos grandes hotéis da orla.

Pelo mesmo prisma, os direitos básicos de quem mora na área carnavalizada são eclipsados, suspensos, suprimidos, apagados ou violentamente restringidos por longo período, como se isso tivesse alguma base ética ou jurídica; como se fosse compatível com a democracia, a liberdade, a decência; como se  fosse coisa normal.  Numa cidade em que a mobilidade urbana  é crítica, o direito de ir e vir dos moradores dessa parte da orla e de outros trechos da urbe se vê severamente limitado por longo tempo. O sono é proscrito para muitos; o sossego fica proibido. 

Quem não quer ensurdecer que se mude. E se quer paz, dane-se. É carnaval! Quem não deseja ver danificada sua casa, seu edifício ou seu estabelecimento de comércio, providencie tapumes e arque com os gastos, pois o poder público não tem nada com isso. Mas prepare-se direito, pois a coisa piora dia a dia: daqui a pouco será necessário blindar as janelas, porquanto os tiroteios entraram em moda nas festas do circuito Barra-Ondina.

Os donos da folia caracterizam sua promoção como cultural, reclamam verbas públicas destinadas à área da cultura. Mas é difícil encontrar qualquer coisa de criativo e interessante no circuito da gente bonita. A criatividade e a beleza, o humor, a crítica, a inteligência, são ainda encontráveis (cada vez menos) no carnaval de Salvador, mas não no espaço que se considera o mais privilegiado dessa folia. Os blocos afros continuam belos, o Filhos de Ghandi ainda encanta, há graça nas Muquiranas e no "ideológico" Mudança do Garcia.

Muitos foliões passam longas horas a caminhar de um lado para o outro, à espera de que surja a estrela e dê seu show, fazendo-os agitar-se quase mecanicamente. Seja como for, os donos da folia insistem em que o carnaval é o supra-sumo da cultura soteropolitana. Também há quem afirme que a sujeira e o barulho “fazem parte” da cultura soteropolitana. Mas o povo de Salvador com certeza não merece o insulto.

Quem está longe desta festa que exclui, marginaliza e deplora o mais humilde não se sinta triste. E quem está prestes a viajar para Salvador pensando em acompanhar uma festa popular, se prepare para assistir a um apartheid sem precedentes na cultura brasileira. Um bloco de pessoas brancas que atravessa um corredor de negros. Está ali a força de um estigma social: os que podem pagar o carnaval e aqueles que o criaram e não tem acesso.



2 comentários:

André Damatta disse...

Parabéns pela matéria! Obrigado! :)

17/2/15 21:43
valeria silva disse...

muito bom, parabéns vc disse tudo que eu sempre achei

19/2/15 16:07

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