Do ponto de vista de quem trabalha
para afastar Dilma Rousseff da presidência da República, o pedido de prisão do
publicitário João Santana é uma medida da maior utilidade. Representa a
possibilidade de alterar uma situação até agora pouco favorável no Tribunal
Superior Eleitoral, onde as chances de cassar a chapa Dilma-Temer, vitoriosa
nas eleições de 2014, se mostram mais remotas do que se costumava imaginar --
até agora.
Explica-se. Tanto pela qualidade das
provas reunidas até aqui, impressionantes pela fragilidade, como pelas mudanças
regimentais a serem promovidas na composição do tribunal, nos próximos meses,
estava em formação um quadro positivo do ponto de vista do respeito às leis em
vigor e às regras da democracia. Ainda que esteja prevista, para breve, a posse
de Gilmar Mendes na presidência do TSE -- justo ele, um adversário declarado e
assumido do Partido dos Trabalhadores -- as outras mudanças no plenário
anunciavam um ambiente de equilíbrio capaz de permitir uma decisão isenta e
responsável.
A prisão de João Santana pode mudar
este quadro -- do ponto de vista político, e não jurídico. Da publicidade, e
não dos fatos e provas. Ao levar para a cadeia -- de início temporariamente --
o profissional responsável pela propaganda das três últimas campanhas
presidenciais do Partido dos Trabalhadores, inclusive a de 2014, sem falar em
outras disputas estaduais e municipais também relevantes, tenta-se fazer aquilo
que não se conseguiu realizar até agora: aproximar a campanha de Dilma com
esquemas condenáveis de corrupção com a Petrobras.
Por isso tornou-se conveniente para o
juiz Sérgio Moro autorizar o pedido de prisão de João Santana, feito pelo
Ministério Público, em vez de aceitar sua oferta para prestar esclarecimentos
em liberdade, como é direito de toda pessoa que não representa nenhum perigo
real para a vida em sociedade. A demonstração de desprezo pelos direitos de uma
pessoa acusada é grande serventia para os rituais do espetáculo. O esforço para
questionar -- com modos brutais -- os direitos dos investigados faz parte de um
jogo destinado a diminuir a legitimidade da defesa, necessária para apontar
qualquer argumento, relevante ou não, como simples manobra protelatória de quem
tem dinheiro para pagar advogado. Não se quer apurar, investigar. O plano é
punir.
Na verdade, o próprio delegado
responsável pela chamada operação Acarajé reconhece a legalidade dos pagamentos
feitos a João Santana pela campanha de Dilma. Admite que "não há, e isso
deve ser ressaltado, indícios de que tais pagamentos estejam revestidos de
ilegalidades."
Com imagens em sequência dela mesma,
que se repetem há quase dois anos, o que a Lava Jato pretende é alimentar a
retórica da impunidade.
Como uma grande campanha
publicitária, ela se destina convencer a massa de brasileiros estruturalmente
injustiçados que a corrupção -- e não a política -- explica os grandes males
acumulados por 500 anos de história. Ao mesmo tempo, tenta amedrontar a
elite do sistema judiciário -- e boa parte do sistema político, inclusive
grandes empresários -- para evitar questionamentos sobre a Lava Jato.
Sou o primeiro a reconhecer a
necessidade de se apurar e investigar denúncias de corrupção. Os casos
denunciados na Petrobras são terríveis -- ainda que poderiam ser menos graves
se tivessem sido enfrentados a tempo, muito antes da chegada do governo do
Partido dos Trabalhadores ao Planalto. Nada se fez nem se faz contra quem nada
fez.
Isso permite duvidar da eficácia de
investigações que não respeitam as regras da democracia e fazem pouco do
direito de toda pessoa ser considerada inocente até que se prove o contrário.
Acredito que apenas pela via democrática é possível construir e praticar
valores consistentes. E o primeiro desses valores é que todos devem ser iguais
perante a lei.
Este é o ponto que separa a ditadura
da democracia, a civilização da barbárie.
A retórica da impunidade assume uma
outra visão. Sugere que a necessidade de punir tornou-se tão urgente, tão
inadiável, que pode-se admitir sacrifícios de direitos e injustiças contra
determinados cidadãos. Mesmo sem anunciar esse ponto de vista de forma clara --
o que seria escandaloso -- o que se defende é o atropelo das garantias
democráticas como uma espécie de mal necessário, sem que se possa compreender
exatamente: necessário para que? Para quem?
Olhando o cotidiano dos brasileiros
com frieza, é possível questionar a ideia do "país da impunidade" com
relativa facilidade. Deixando uma mistificação pacientemente construída desde o
início dos anos 1950, quando partidos sem base popular falavam da necessidade
de "regeneração moral do país", a verdade é que não se prende
pouco. Prende-se muito. O problema é que se julga mal.
Basta recordar que o Brasil tem a
quarta maior população encarcerada do mundo e que, se todos os mandatos de
prisão fossem cumprido, a proporção de cidadãos enjaulados aumentaria em 20%,
ou 200 000 condenados a mais. Num universo superlotado, seria preciso liberar
centenas de milhares de condenados.
Um em cada três encarcerados sequer
teve direito a uma condenação formal, mas cumpre, por anos, um período de
detenção provisória. Muitas pessoas são condenadas em julgamentos onde a única
prova contra elas é o testemunho de policiais responsáveis pela prisão
--e pelo inquérito -- também pela coleta de provas, como demonstra um levantamento
que mencionei aqui neste espaço.
E se você acredita que o problema é
punir os de cima, convém ponderar o discurso e evitar confundir a fantasia
conveniente com a realidade, muito mais complicada. Entre a renúncia de
Fernando Collor e a AP 470, o país afastou um presidente da Republica, mandou
para a prisão o ministro mais importante do governo Lula e também um presidente
da Câmara de Deputados. Também tirou de combate vários dirigentes com papel
memorável na democratização do país. Não foi só: a principal acionista de
um dos grandes bancos privados de Minas Gerais foi condenada e presa, da mesma
forma que os publicitários mais premiados.
Eu acho que muitas dessas punições
foram erradas, com penas que não correspondiam as provas e muitas vezes sem
prova alguma. Mas essas prisões ajudam a questionar a fantasia da impunidade,
também. A grande questão é a seletividade, que mostra que, se na base da
sociedade a Justiça acaba contaminada por razões sociais, no topo o tratamento
se diferencia por razões políticas.
Este é o ponto, que retorna ao
debate no pedido de prisão de João Santana.
Paulo Moreira Leite
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