Pela
primeira vez em sua história o Brasil passa a viver a partir de hoje uma
situação anômala, esdrúxula, estapafúrdia e absurda, com dois presidentes da
República convivendo ao mesmo tempo na Esplanada: uma que ainda não deixou de
ser e outro que ainda não é.
Dois presidentes pela metade. E cuja soma das metades não resulta num
presidente inteiro.
Dois presidentes pela metade que também vão, por sua vez, dividir o país em
duas metades que, somadas, também não darão um país inteiro.
Eis o resultado melancólico que nos fornecem políticosúpulo, que até
anteontem faziam parte do governo, ocupando a maioria dos ministérios, e que
decidiram, em vez de administrar parcelas do poder, tomar para si o poder por
inteiro.
Em vez de reconhecerem as suas próprias falhas, inconsistências, omissões e
incompetências apontaram o dedo para aquela que os escolheu, como se ela fosse
a única culpada.
As
aparências tomaram o lugar dos fatos concretos. Aparentemente, a constituição
foi cumprida, mas, de fato, não foi. Aparentemente, houve crime de
responsabilidade, mas, de fato, não houve. Aparentemente, a democracia continua
em vigor, mas, de fato, foi conspurcada. Aparentemente, não houve golpe, mas,
de fato, houve.
A
presidente deposta mantém todas as suas prerrogativas, menos a de governar.
Mantém a residência no Palácio da Alvorada, recebe a remuneração, tem direito a
guarda pessoal, a transporte, a equipe de gabinete.
O presidente
usurpador, mas provisório, não sobe a rampa, não recebe a faixa, não faz o seu
discurso do púlpito, não é saudado pelo povo.
O
golpe sem canhões se consuma na forma de um tumor que faz a sua metástase e,
como todo tumor, nada constrói, mas destrói.
O
governo usurpador assume sob o signo da ilegitimidade, da violência constitucional,
da ilegalidade, sustentado pela fina flor de uma súcia que responde a inúmeros
e vigorosos e graves ações penais que se arrastam no STF e cujo passado
contamina o futuro.
O Supremo,
indiferente à dúvida fundamental que percorre a espinha dorsal do país, não se pronuncia acerca da inexistência de
crime e, em consequência, se apequena.
Os políticos
que proporcionaram esse anticlímax, esse espetáculo grotesco, tendem a se
afundar cada vez mais na lata de lixo da história e a serem varridos do mapa.
Durante os
próximos seis meses, a novela do golpe vai continuar a soltar fumaça, como um
dragão da maldade que o santo guerreiro não conseguiu exterminar, e o risco de
incendiar a nação será sentido a cada momento.
Teremos,
de um lado, uma presidente que continuará a fustigar seus algozes de ocasião,
os oportunistas, os traidores, os canalhas, os ilegalistas e, de outro, um
presidente acumpliciado com essa corja, a tecer a teia de aranha em que se
pretende aprisionar os direitos e as conquistas da população mais fragilizada,
que não viu o que aconteceu na longa madrugada infame e acorda mais fragilizada
ainda, deposta juntamente com a presidente.
Teremos,
de um lado, uma presidente que não tem máculas, não tem acusações pessoais, não
tem ações penais e, de outro, um grupo cujos currículos ficarão ainda mais
expostos em praça pública e execrados por aqueles que conseguem ainda
distinguir entre o bem e o mal, entre o certo e o errado, entre o que presta e
o que não presta, entre o que pode e o que não pode.
Teremos,
de um lado, uma presidente honrada, decente e leal e, de outro, um presidente
interino que traiu a confiança de quem o elegeu, que urdiu uma conspiração nas
sombras e que se apossa do que não é seu.
Teremos,
de um lado, uma presidente que não tem nada a esconder e, de outro, um
presidente interino empenhado em ocultar seu passado, seu caráter e suas
convicções.
De
um lado, uma presidente liberta das amarras e, de outro um presidente interino
às voltas com as inevitáveis brigas internas que vão corroer sua inútil e breve
gestão.
É
uma longa novela com 200 milhões de figurantes em cujos próximos capítulos,
embora ainda não escritos, é de se prever o aumento dos conflitos, da
insegurança e do medo.
É uma novela que tende a oferecer cenas épicas, mas das quais o país não terá
nada a ganhar e sim a lamentar.É a novela de um país sem um líder autêntico e
confiável e, quando não há um líder a apontar o caminho o que tende a
prevalecer é a confusão, é a falta de rumo.
Um
país que tem dois presidentes pela metade, não tem nenhum.
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