Os historiadores de hoje qualificam de civil-militar o golpe de 1964,
pois não teria prosperado sem apoio de políticos de direita, da Igreja
conservadora e de todos os jornais, exceto Última Hora. Todos se arrependeram,
foram golpeados, pediram a volta da democracia e foram banidos da paisagem.
Arrependimento e vergonha terão também os algozes da presidente Dilma, se
consumarem hoje o golpe sem tanques, em vestimentas formais que não lhe mudam a
natureza. Que ganharão eles além da pecha indelével de golpistas em suas
biografias?
Os favores de um governo que vem aprofundando a crise econômica e
cindirá perigosamente o Brasil, ao invés de unificá-lo? As graças de Temer, um
presidente impopular e ilegítimo, que segundo a procuradora Ela Wiecko estará
nas próximas delações da Lava Jato? As graças do empresariado que já não pode
fazer doações eleitorais? Muito pouco para tão grande mácula. Muito pouco
diante da ferida que será aberta e das consequências que virão.
No penúltimo capítulo deste drama, a sessão de ontem à noite, os
senadores se revezaram na tribuna, falando cada um por dez minutos. Foram falas
de dois mundos. Os aliados da presidente Dilma advertindo sobre o crime contra
a democracia que sua deposição representará, num processo que retorceu as leis
para forjar crimes e pretextos jurídicos que a defesa jogou por terra,
inutilmente.
Os golpistas, repetindo a algaravia de ressentimentos e preconceitos,
tangenciando a acusação formal, as pedaladas e decretos ordinariamente
praticados e nunca antes criminalizados. Mais uma vez, voltaram-se para o
“conjunto da obra”, reduzindo o ciclo de governos petistas a uma terra arrasada
pela incompetência e a corrupção, dela subtraindo todas as transformações
ocorridas no Brasil nos últimos 13 anos e meio. “Eles não sabem nem tocar uma
padaria”, disse o “profundo” senador Zezé Perrella, o homem do helicóptero.
Depois dele, Lindberg Farias, dirigindo-se a Dilma com mais um discurso
antológico, recordou tudo que eles, e as elites a que servem, nunca digeriram.
Tudo que ruminaram na tribuna para justificar o voto a favor da violação da
vontade popular: gasto público com políticas sociais, pobres em aviões, filhos
de favelados em universidades, redução da desigualdade, domésticas com direitos
trabalhistas, política externa ativa e altiva, zelosa da soberania e solidária
com os emergentes e os povos mais pobres. Em 1964, seus similares também
falaram muito em corrupção, incompetência e ingovernabilidade, além do perigo
comunista representado por um governo que prometia reformas de base e reforma
agrária.
A quartelada de 1964 venceu com o apoio de três governadores que,
ambicionando a Presidência, queriam se livrar de Jango, que poderia tentar
aprovar a emenda da reeleição, e de um candidato forte como Leonel Brizola. Que
o primeiro fosse deposto e o segundo, cassado, calcularam. Eram eles Carlos
Lacerda (GB), Magalhães Pinto (MG) e Adhemar de Barros (SP). Pouco tempo depois
a ditadura acabou com as eleições diretas e os três foram cassados.
Um dos jornais que pediu o golpe, o Correio da Manhã, logo se
arrependeu. Arruinado pela ditadura, fechou. A Igreja que fez as marchas
pedindo ou saudando o golpe viu padres serem perseguidos, presos e
assassinados. Boa parte dos clérigos abraçou a Teologia da Libertação e a
Igreja se reposicionou, em defesa da democracia e dos direitos humanos.
Os castigos que esperam os golpistas de hoje são outros, e as razões
para arrependimento também. O que os espera não é apenas a responsabilização
diante da História por um crime contra a democracia, não é só o desprezo das
gerações futuras por mais uma violação da vontade popular.
Volto aos historiadores lembrando José Honório Rodrigues, quando apontou
a prática recorrente da “conciliação pelo alto”, por elites que fazem do povo
ator secundário, “capado e sem voz, subjugado e sangrado”. O impeachment é mais
uma “conciliação pelo alto”, entre os partidos que se juntaram a Temer e ao
PMDB para tomar o poder, o empresariado, o mercado, as mídias e a aliança judicial-policial,
afora os interesses externos. Os tempos são outros, porém.
Se o golpe prevalecer, quando Temer tentar implementar sua agenda
antipopular, não haverá silêncio nem passividade.
Tereza Cruvinel
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