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O CAUSO DE ROMÃOZINHO

7/25/2018





Tua terra tem palmeiras
Onde canta o sabiá
Na minha, mandacaru
umbuzeiro e pé de juá.


Xique-Xique. Manhã de sexta-feira. Mestre Chiquinho, numa só manobra, encostou a barca "Sereia da Ipueira" no barranco do porto do Mocambo dos Ventos.

Havíamos deixado, antes do nascer do sol, a Ilha do Miradouro e o estreito do canal do Guaxinim. Já estávamos bem distantes do porto da Ponta das Pedras, ponto de partida e de recolhimento da âncora da nossa embarcação.

Ali no alto do barranco debaixo de uma mangueira que resistia tenazmente a força dos ventos e da areia que formavam as dunas, iniciávamos o ritual próprio de pescadores, que consistia no ensaio do preparo da sapeca de peixe, ao acender o fogo, para formar a brasa, sob uma improvisada forquilha para assar os mandins, curimatás, pirás e piranhas bebas, pescados com rede e tarrafa.

Acercaram-nos alguns nativos, moradores do Mocambo. Traziam um garrafão de aguardente, uma manta de carne de bode salgada e farinha de mandioca preparados ali mesmo ao sabor e ao sopro dos ventos.

Mestre Chiquinho não recusou a aguardente brejeira. De minha vez, para não fazer desfeita ao povo do Mocambo, aceitei, também, de bom grado, uma talagada da catuzeira, relíquia artesanal que ainda cheirava à cana caiana dos brejos do Icatu.
Os nossos anfitriões, orgulhavam-se em relembrar que a localidade do Mocambo dos Ventos era quilombola e até hoje habitada por descendentes de escravos.

Apesar dos meus esforços em demonstrar naturalidade nativa, não houve jeito. Confundiram-me com algum turista, pois a máquina fotográfica, a minha bermuda estampada, o boné e os óculos escuros denunciaram-me escancaradamente. Logo eu que tenho fama de ser marxista, desde que Marx dizia ser Marx mesmo pintado de verde-amarelo.

Nos intervalos de cada prosa, debaixo de frondosa mangueira, de cada dose de aguardente e dos sucessivos mergulhos no rio que marulhava ali em frente, contavam-me causos fantásticos envolvendo pescarias, assombrações, mistérios, lutas, mitos e lendas do Velho Chico, representando uma identidade particular, única, dos descendentes de antigos escravos.
Um dos causos a mim narrados pelos mucambenses dizia respeito a lenda de Romãozinho.

Reproduzo, resumidamente:
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PARTE 2


Romãozinho era um menino endiabrado, filho de um casal de lavradores. O pai trabalhava de sol-a-sol na roça e romãozinho era encarregado de levar-lhe diariamente a refeição. A mãe sofria muito com as traquinagens do filho e a brutalidade do marido que a espancava por qualquer "dá cá aquela palha". Romãozinho gostava de ver sua mãe apanhar e, por isso, provocava brigas entre os seus pais.

Todos os dias que ia levar a comida para seu pai na roça, o capeta do menino comia a metade pelo caminho, razão pela qual o pai tinha sempre um motivo para espancar a mulher quando chegava em casa á noite, alegando que ela era uma pessoa mesquinha e que queria matá-lo de fome. A mulher retrucava que mandava comida suficiente e isso aumentava a raiva do marido.

Certa vez, a pobre mãe matou uma galinha e preparou a capricho, mandando-a inteirinha para o marido. Romãozinho comeu tudo no caminho e chegando ao local do trabalho, onde o pai, faminto, o esperava, apresentou-lhe apenas os ossos da galinha, disse: ela manda dizer que se contente com os ossos, pois a carne guardou para o vigário.

Mal acabou de ouvir o que o filho lhe dizia, o homem saiu como louco e, chegando em casa, matou a mulher. No momento exato em que o marido matava a esposa, o mau filho estourou, deixando atrás de si um horrível cheiro de enxofre.

Desse dia em diante Romãozinho começou a aparecer para as pessoas, fazendo boiadas arrebentarem os currais, virando panelas no fogo, furando vasilhames de água e jogando pedras nos telhados das casas. Ele virou bicho aos doze anos de idade e quando toma birra com uma pessoa ela tem que se mudar de terra.

EPÍLOGO


Naquela altura, depois de ouvir a história de Romãozinho, urgia molhar a garganta e beliscar um churrasquinho de carne de bode, ali na beira do rio. Para minha surpresa e dos demais, a cachaça e os tira-gostos desapareceram num passe de mágica, num encanto.

Ainda ouvimos uma gargalhada estridente, que ecoava na curva do rio, enquanto regressávamos ao porto das Pontas das Pedras.

Ao anoitecer chegamos a Xique-Xique em tempo ainda de vermos o deslumbrante pôr do sol que se descortinava no horizonte da ipueira.

Na Avenida J.J. Seabra, já refeito do susto, fui induzido a fechar o corpo, com um brinde de januária no boteco de Manezim, rezando alguns benditos e, em especial, o Salmo Noventa e Um.

Nilson Machado de Azevedo

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