De certa
forma, a palavra violência substitui hoje o espaço que um dia foi ocupado pela
fome como a ligadura dos desafios que enfeixam a grande questão da política
brasileira: a realização plena da cidadania na vida das grandes massas do seu
povo.
Como a fome, a violência é uma palavra incômoda. Muitos prefeririam não anexá-la à agenda do país, menos ainda reconhecê-la como estuário das pendências e desafios dessa década. Policiais inaceitavelmente armados reivindicando direitos - justos, diga-se - são parte desse mosaico desordenado e urgente, que inclui a macabra colheita de 100 cadáveres em cinco dias de recuo parcial do policiamento nas ruas de Salvador.
A exemplo da fome, a
violência não responde a um cardápio único. Superá-la requer uma verdadeira
revolução no acesso e na qualidade de bens que formam (hoje deformam) a
subjetividade brasileira.
Uma escola efetivamente republicana que nivele por cima, oferecendo um mesmo ponto de partida igual para todos, por exemplo (para isso o orçamento do MEC não pode secundar a massa de recursos fiscais transferidos aos rentistas da dívida pública). Ou uma mídia pluralista capaz de democratizar a informação e a cultura, aguçando em vez de entorpecer o discernimento crítico e a subjetividade livre e independente. Serviços públicos de saúde, segurança e acessos a bens culturais que afrontem - a palavra é justamente essa, afrontar - abismos seculares escavados pela desigualdade, alinham-se como requisitos à restauração de portas da civilização corroídas pelo cupim do elitismo excludente e parasitário.
Nada se fará sem democracia e
bons empregos e tampouco basta ter orçamento se o aparelho público for
desastroso - colocando, como agora, no caso dos aeroportos, o governo no
desgastante dilema de privatizar ou caminhar para o colapso aéreo em plena Copa
de 2014. Tudo isso é relevante, mas o grande salto para o futuro consiste
justamente em admitir que a mobilidade incremental azeitada pelo sistema
econômico disponível não é suficiente.
Não é que seja apenas
insuficiente: é quase um suicídio social depositar a formação da subjetividade
nas mãos do mercado.
A nova geografia da violência parece desmentir
avanços quase épicos alcançados na redução da pobreza, da fome e do desemprego,
mas não é verdade. Eles são reais. Foram e serão decisivos na reformulação do
desenvolvimento brasileiro. Infelizmente, porém, não há paradoxo: o rastro da
violência avança em linha com a interiorização do crescimento, do consumo e do
investimento.
O fato de uma greve policial, como a de Salvador, ter
gerado - se com 'ajuda' de setores grevistas pior ainda - mais de 100 homicídios
em menos de uma semana confirma as dimensões da emergência política embutida
nessas linhas paralelas.
A ruptura de equilíbrios precários, substituídos
por impulsos mórbidos de consumo --e a indução a comportamentos anti-sociais,
inoculados pelo canhão midiático-- gera confusão e endosso cego ao que o mercado
difunde como sendo o novo, o desejável e o indispensável, ao preço do 'custe o
que custar'. Geram, ademais, uma percepção desesperadora da desigualdade medida
por paradigmas de riqueza e ócio nefastos e inviáveis.
A reiteração da
sexualidade como uma dimensão utilitária, exibicionista e descartável do
relacionamento humano faz parte desse desterro ético. Seu apelo lubrifica a
emergência de padrões de comportamento incensados por novelas e animadores
psicopatas de Big Brothers, que precipitam a baldeação de valores tradicionais
para zonas cinzentas em que semi-cultura, semi-informação, mercado e barbárie se
marmorizam e se alimentam em perfeita metástase social.
Se um factóide de
estupro induzido e capitalizado, rende prestígio, dinheiro e admiradores aos
seus protagonistas, como impedir efeitos em cascata numa subjetividade
desprovida de filtros para rejeitar a fraude, a falta de ética, a corrosão do
caráter e dos laços da convivência compartilhada?
O Mapa da Violência, coordenado por Julio Jacobo Waiselfisz, dimensiona essa
espiral pela fita métrica da uniformização dos padrões de violência homicida no
território nacional. "Seria altamente desejável se essa transformação atuasse no
sentido de homogeneizar as taxas por baixo', pondera o relatório. " Contudo",
constata, "se isso realmente acontece em algumas regiões do país, na maior parte
dos casos, presenciamos o efeito inverso: o crescimento vertiginoso da violência
em locais considerados pacíficos e tranquilos". Em 2010, o conjunto daquelas que
eram até então as 17 menores taxas de homicídio da federação, superou em 25,7%,
a soma das que detinham antes os índices recordes. Um exemplo ilustrativo e
atual: nessa baldeação, a Bahia saltou do 23º lugar para o 3º no ranking
nacional de homicídios.
A juventude fragilizada pela mistura de
semi-formação e semi-maturidade é a principal vítima desse 'ajuste' pelo pior. A
taxa média de homicídios na sociedade brasileira encontra-se estabilizada há
alguns anos na faixa de 26 mortes por 100 mil (nada a comemorar: em 2010 foram
50 mil assassinatos; média de 137 homicídios por dia). Mas na faixa etária entre
20 a 24 anos, as coisas assumem contornos de chacina geracional: a taxa salta
para 60,4 homicídios por cem mil. A violência homicida já é responsável por
38,6% de todas as mortes de jovens no país, enquanto entre os não jovens a taxa
cai para 2%.
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Em crises anteriores, de gravidade e duração muito aquém da atual, o país despencou, a economia regrediu, a miséria aumentou. Mas os dados da violência parecem dizer que ainda não atingimos o nervo da iniquidade. Ainda carecemos de um desassombro político e programático. Um novo marco divisor que não pode ser apenas a boa gestão do ciclo anterior.
Que busque inspiração no exemplo de Josué de Castro e não retire o desafio da violência do lugar que ele ocupa, queiramos ou não admitir: o incômodo corolário de estruturas e interesses que, ao incorporar ao mercado, cobram o pedágio da servidão ao consumo, magnificam o sentimento da desigualdade e selam o cativeiro de uma subjetividade desumanizada desprovida da compreensão crítica da sociedade e do seu lugar na história.
Fonte: Diversas
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