No finado ano de 2013 assistimos a cenas nefastas na área do judiciário brasileiro, como as do julgamento da ação penal 470, o chamado “mensalão”. A maioria dos ministros da corte suprema, ao contrário do que se passou em outros momentos de nossa história, dessa vez embarcou na violação constitucional, ferindo de morte a nossa Carta Magna, sem estar sob a mira das armas. Simplesmente dobrou-se à ditadura da mídia.
A bem da verdade, alguns dos magistrados foram coerentes com sua trajetória. Atiraram-se avidamente à oportunidade de criminalizar dirigentes de esquerda e prestar bons serviços aos setores que representam.
O voto de Gilmar Mendes, por exemplo, transbordou de revanchismo contra o Partido dos Trabalhadores. O ministro Marco Aurélio de Mello, o mesmo que já havia dito, em entrevista, que considerava o golpe de 1964 como um “mal necessário”, seguiu pelo mesmo caminho. Mandaram às favas a análise concreta das provas e testemunhos. Apegaram-se às declarações de Roberto Jefferson para fabricar discurso de rancor ideológico, ainda que disfarçado por filigranas jurídicas.
Outros juízes, porém, simplesmente abaixaram a cabeça, acovardados. Balbuciavam convicções sem fatos ou argumentos dignos. A ministra Carmen Lúcia não listou uma única evidência firme contra José Dirceu ou Genoíno, contentando-se com ilações que invertem o ônus da prova. Foi pelo mesmo caminho de Rosa Weber, sempre pontificando sobre a “elasticidade das provas” em julgamentos desse tipo.
O papel nobre e honroso de resistência à chacina judicial coube ao ministro Ricardo Lewandovski, o único a se ater, com rigor, aos autos, esmiuçando tanto os elementos acusatórios quanto as contraposições da defesa. Teve a companhia claudicante de Dias Toffoli, sempre apresentado pela velha mídia como “ex-advogado do PT”, sem que o mesmo tratamento fosse conferido a Gilmar Mendes, notório áulico tucano.
Assistimos a um julgamento político e de exceção. Um aleijão que fere os princípios constitucionais e contamina as instituições democráticas. O processo foi presidido por teorias que levou ao objetivo pré-concebido, em marcha batida na qual foram atropeladas seculares garantias civis.
A existência da compra de votos dos parlamentares é reconhecida sem que houvesse qualquer prova factual ou testemunhal. A transferência de recursos financeiros entre partidos passou automaticamente a ser considerada corrupção passiva, mesmo que não houvesse ato de ofício ou compromisso ilícito, renegando a jurisprudência da corte e abrindo as portas para toda sorte de subjetivismo. .
Aonde estão os super poderes de Dirceu?
Estão na “conversa”, dizem. Estão no “eu sabia”, no “só pode ser”, no “não é crível” e assim por diante. Dirceu conversava e encontrava todo mundo, asseguram os juízes. Mas como seria possível coordenar um governo sem falar nem conversar? Sem sentar-se com cada um daqueles personagens, articular, sugerir, dirigir. Conversar seria prova de alguma coisa?
Posso até imaginar coisas. Posso “ter certeza.” Posso até rir de quem sustenta o contrário e achar que está zombando da minha inteligência.
Mas para condenar, diz a professora Margarida Lacombe: "é preciso de provas robustas, consistentes. Ainda vivemos no tempo em que a acusação deve apresentar provas de culpa".
Quadros de partido e governo são condenados porque a função que exercem traz em seu bojo a responsabilidade penal por supostos atos de seus subordinados ou até por aqueles sobre os quais teriam ascendência não-funcional. Em nome dessa doutrina, denominada “domínio do fato”, a presunção de inocência é fuzilada. Cabe ao réu comprovar que não teria como desconhecer o fato eventualmente delituoso.
Essa coleção de barbaridades e ofensas à Constituição levou à condenação, por corrupção ativa, de José Dirceu, José Genoíno e Delúbio Soares.
Dos três, apenas o ex-tesoureiro petista esteve vinculado a situações materiais, mas sem que houvesse qualquer elemento comprobatório de ação corruptora. Arrecadou e transferiu irregularmente fundos para os partidos, e desse procedimento é réu confesso, mas não houve registro fático que ele algo tivesse comprado que tivesse sido posto à venda pelos parlamentares denunciados.
Quando o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso conseguiu a emenda da reeleição, o deputado Ronivon Santiago, então no PFL do Acre, confessou ter recebido 200 mil reais para dar seu voto a favor dessa medida. Aqui temos valor, fato e prova mediante confissão – aliás, de um crime que o STF jamais se dispôs a julgar. Nada disso, no entanto, apareceu na ação penal 470. Apenas ilações e conjecturas a partir de mecanismos anormais de financiamento partidário ou eleitoral.
Mas o caso de Dirceu e Genoíno é ainda pior. Não apareceram na cena de qualquer crime, delito ou contravenção. A suposta prova contra o ex-guerrilheiro do Araguaia é um contrato de empréstimo contabilizado e quitado, cujas verbas não constam das transações interpartidárias, como bem demonstrou o ministro Lewandovski. Foi condenado porque a ele se aplicou a lógica de exceção: se era presidente do PT, não tinha como ser inocente das denúncias formuladas é a aplicação da teoria jurídica alemã do "domínio do fato" em terras tupiniquins. Aliás, a adoção da teoria do domínio do fato traz insegurança jurídica, pois permite a condenação de inocentes com base apenas em presunções e indícios, colocando em risco, por exemplo, profissionais em posição de comando nas empresas e para quem tem alguma noção de direito sabe que o domínio do fato não convive com o princípio do in dubio pro reo.
A condenação do ex-chefe da Casa Civil, por sua vez, apresenta-se como a maior das brutalidades legais cometidas. Salvo acusações do também condenado Roberto Jefferson, não há contra si qualquer testemunho ou evidência. Ao contrário: dezenas de depoimentos juramentados corroboram sua inocência, formando verdadeira contra-prova. Mas a maioria dos ministros sequer se deu ao trabalho de citá-los ou analisá-los.
Ambos, Dirceu e Genoíno, tiveram seus direitos degolados para que os interesses mobilizadores do processo se consumassem. Há oito anos as forças conservadoras e seu partido midiático fizeram do chamado “mensalão” o centro da estratégia para enfrentar a liderança crescente do PT e do ex-presidente Lula, de vitalidade reconfirmada em seguidas eleições. Condenar os dois dirigentes era marco imprescindível dessa escalada.
O STF, acossado pela mídia corporativa, além de aviltado pelo reacionarismo e a covardia, prestou-se a um triste papel, escrevendo página de vergonha e arbítrio em sua história. De instituição responsável pela salvaguarda constitucional, abriu-se para ser o teatro onde se encena a reinvenção da direita.
Quem viver, verá.
Fonte: Opera Mundi
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