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Crônica surrealista da Quarta-feira de Cinzas

3/06/2014



Nesta  manhã de Quarta-Feira de Cinzas vou caminhando  pela avenida e ainda vejo alguns mascarados, tristíssimos, sentados no meio-fio das calçadas, como se saudassem as cinzas de uma alegria que ficou escondida em algum lugar da alma. 
Viver é assim. É como dizem os poetas: "a vida é arte de encontro, mesmo com o desencontro de  um sorriso tirado do caminho para que a dor passe"  numa viagem curta a se resumir em alguma poesia  pós carnavalesca.
Mesmo que todos os sonhos sejam possíveis e realizados a cada tempo e que todas as viagens hedonistas sigam determinado percurso, a ninguém será dado desviver o tempo vivido. E a bagagem vai pesando, caindo sobre nossos ombros como um fardo. Acomodamos as alegrias num canto, as tristezas noutro, as frustrações noutros mais. Tão misterioso é viver e nem percebemos que guardamos em nós mesmos um tempo imenso de vida, misturado aos nossos sonhos e às nossas velhas fantasias de palhaços.
Onde se encontram o arlequim daqueles antigos carnavais e o beijo terno daquela colombina, quando a festa da vida parecia sem fim? Viver é colar lembranças num álbum de fotografias. Nem precisa que sejam de verdade as lembranças todas que ficaram pregadas na alma. Basta ter vivido intensamente cada instante, sem saudosismo, confirmando a intensidade do presente,  sem precisar esconder de mim mesmo o palhaço que fui, quando o medo castigava aquelas coisas proibidas da subversão e o ridículo caia sobre mim como uma promessa de felicidade.
Prisioneiro que sou de inesperada solidão com os olhos dizendo adeus, estou agora a caminhar pelas ruas ainda fantasiadas  de tristes  pedaços de papéis encarnados das serpentinas, nesta manhã melancólica, sem enfeites, esperando o banco abrir para  pedir um empréstimo em papel-moeda.


nilsonazevedo@globo.com

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