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Um dia de feira na beira do rio

2/05/2015


 
Nos dias de feira livre participei, algumas vezes, das rodas em torno dos propagandistas do óleo de peixe elétrico, do homem da "mala da cobra", dos cegos violeiros, dos repentistas de literatura de cordel, exímios comunicadores do sertão.

Na feira semanal surgia o palco no chão de terra batida ao redor do Mercado Municipal,  a improvisada ribalta iluminada pelos raios do sol da beira do rio, quando as atenções se voltavam para os artistas populares,  os mascates graduados na filosofia e marketing de pílulas milagrosas para curar mau-olhado, espinhela caída, ressaca, quebranto e dor de corno, bem assim de  mezinhas compostas do princípio ativo da catuaba para curar fastio sexual e seus colaterais efeitos, objeto de galhofas, piadas e dichotes, além dos delatores, dedos-duros,   dos potenciais pacientes consumidores vorazes das pílulas divulgadas pelos mascates, propagandistas e marreteiros.

No dia de feira disputava-se, como até hoje se disputa,  nos botecos e nas precárias barracas  erguidas desordenadamente nas  imediações do porto de Xiquexique, as cachaças catuzeira,  pitú e 51, raiz  de quebra-facão em infusão na cachaça,  vinho de jurubeba, tudo isso com a possibilidade do acompanhamento de  tira gosto de mandi, caboge,  curimatá, frito de  carne de bode, bolo brevidade  e pêta.

Na feira, conheci repentistas e divulgadores de folhetos de cordel, dos quais recolhi esses versos em obra de oito pés:

Gancho de pau é forquilha,
Catombo de pau é nó,
A franga pôs – é galinha,
O fumo ralado é pó,
Peitica cantou é chuva!
Pé de boi é mocotó,
Sumo de cana é cachaça,
Pé de goela é gogó.

De um poeta popular, natural de Remanso, pitoresca cidade  às margens do lago de Sobradinho, decorei esses versos por ele recitados, a demonstrar a sua inteligência e espirituosidade,
quando todos nós aguardávamos esperançosos o período das chuvas no sertão, época em que  a terra ardente entra no cio querendo ser fecundada:

O rio se excita e transborda
Com a bonança das chuvas
Seguindo e fazendo curvas
Num trovejar que o acorda
E um sertanejo recorda
Das agruras do passado
Já sente o solo molhado
Ver o vergel no baixio
O sertão está no cio
Querendo ser fecundado.

Mas se existe essa espontaneidade dos repentistas,
 a poesia de cordel tem sido usada nas propagandas ou reclames, como se  pode observar na sextilha abaixo, onde se fez, por encomenda, propaganda da Mercearia do Povo, estabelecimento comercial localizado  no bairro do Alto Cheiroso, em Juazeiro da Bahia:

Aqui nós temos de tudo
Feijão, farinha e cachaça
Tudo que você precisa
Tá no Mercado da praça
Mercearia do Povo
O nosso preço é de graça.

Observem, ainda,  os  versos, de autoria do poeta Bastos Tigre,  enquadrados  no estilo cordel, criados para  propaganda de “remédio”  que se tornaram famosos, especialmente por ter sido divulgados  nos populares bondes,  transporte coletivo  comum  nas grandes cidades brasileiras em meados do Século XX:

Veja ilustre passageiro
o belo tipo faceiro que
o senhor tem a seu lado.
E, no entanto, acredite,
Quase morreu de bronquite
Salvou-o Rhum Creosotado!]
 
E na apoteose dos causos e das cantorias, surgiam os versos cantados e recitados pelos históricos remeiros do Velho Chico, os quais reproduzo uma das suas muitas versões:
 
Juazeiro da lordeza,
Petrolina das missais,
Santana do sobrado,
Casa Nova da fildalguia,
Sento-Sé da nobreza,
Remanso da valentia,
Pilão Arcado da desgraça,
Xique-Xique dos bundões,
Icatu, cachaça pobre,
Barra só dá barões,
Morpará da pedra de amolar
Bela Vista do Lagamar,
Bom Jardim da rica flor,
Urubu da Santa Cruz,
Triste do povo da Lapa
Se não fosse o Bom Jesus,
Carinhanha é bonitinha
Malhada também é,
Passa Manga e Morrinhos,
Paga imposto em Jacaré,
Januária cachaça boa
São Francisco da arrelia
São Romão da bruxaria
Pirapora carreira grande
Correntina meia carreira
Bato prego em Santa Rita
Caga Mole em Barreiras


Nilson Machado de Azevedo

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