A explicação da professora de meu filho, foi comovente: a briga entre o
cravo - o homem - e a rosa - a mulher - estimula a violência entre os casais.
Na nova letra "o cravo encontrou a rosa debaixo de uma sacada/o cravo
ficou feliz /e a rosa ficou encantada".
Que diabos é isso? Pelo andar da
carruagem, o próximo passo é enquadrar o cravo na Lei Maria da Penha.
Será que esses malucos sabem que “O cravo brigou com a rosa” faz parte de
uma suíte de 16 peças que o compositor Villa Lobos criou a partir de temas
recolhidos no folclore brasileiro?
Outra música infantil que mudou de letra foi o Samba Lelê. Na
versão da minha infância o negócio era o seguinte: Samba Lelê tá doente/ Tá com
a cabeça quebrada/ Samba Lelê precisava/ É de umas boas palmadas. A palmada na
bunda está proibida. Incita a violência contra a menina Lelê. A tia do maternal
agora ensina assim: Samba Lelê tá doente/ Com uma febre malvada/ Assim que a
febre passar/ A Lelê vai estudar.
Se eu fosse a Lelê, com uma versão dessas, torcia pra febre não passar
nunca. Os amigos sabem de quem é Samba Lelê? Villa Lobos de novo. Podiam até
registrar a parceria. Ficaria assim: Samba Lelê, de Heitor Villa Lobos e Tia
Nilda do Jardim Escola Criança Feliz.
Comunico também que não se pode mais atirar o pau no gato, já que a música desperta nas crianças o desejo de maltratar os bichinhos. Quem entra na roda dança, nos dias atuais, não pode mais ter sete namorados para se casar com um. Sete namorados é coisa de menina fácil.
Ninguém mais é pobre ou rico de marré-de-si, para não despertar na garotada o sentido da desigualdade social entre os homens.
Daqui a pouco só chamaremos o anão - o popular pintor de roda-pé ou leão
de chácara de baile infantil - de deficiente vertical. O crioulo - vulgo
picolé de asfalto ou bola sete (depende do peso) - só pode ser chamado de
afrodescendente. O branquelo - o famoso branco azedo ou Omo total - é um
cidadão caucasiano desprovido de pigmentação mais evidente. A mulher feia -
aquela que nasceu pelo avesso, a soldado do quinto batalhão de artilharia
pesada, também conhecida como o rascunho do mapa do inferno - é apenas a dona
de um padrão divergente dos preceitos estéticos da contemporaneidade. O gordo -
outrora conhecido como rolha de poço, chupeta do Vesúvio, Orca, baleia
assassina e bujão - é o cidadão que está fora do peso ideal. O magricela não
pode ser chamado de morto de fome, pau de virar tripa e Olívia Palito. O careca
não é mais o aeroporto de mosquito, tobogã de piolho e pouca telha.
Nas aulas sobre o barroco mineiro, não poderei mais citar o Aleijadinho.
Direi o seguinte: o escultor Antônio Francisco Lisboa tinha necessidades
especiais... Não dá. O politicamente correto também gera a morte do apelido,
essa tradição fabulosa do Brasil.
O Estatuto do Torcedor ao disciplinar as manifestações das torcidas de futebol, ao invés de mandar
o juiz pra putaqueopariu e o centroavante pereba tomar no olho do ... teremos que
cantar nas arquibancadas dos estádios, o allegro da Nona Sinfonia de Beethoven,
entremeado pelo coro de "Jesus, Alegria dos Homens", do velho Johann Sebastian Bach.
Falei em velho Bach e me lembrei de
outra. A velhice não existe mais. O sujeito cheio de pelancas, doente, acabado,
o famoso pé na cova, aquele que dobrou o Cabo da Boa Esperança, o cliente do
seguro funeral, o popular tá mais pra lá do que pra cá, já tem motivos para
sorrir na beira da sepultura. A velhice agora é simplesmente a "melhor
idade".
Se Deus quiser morreremos, todos, gozando da mais perfeita saúde.
Defuntos? Não.
Seremos os inquilinos do condomínio Cidade dos Pés Juntos.
A VOZ
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