As instituições estão funcionando (Por Marcelo Zero)
Após o
golpe, tudo volta ao normal. Tudo volta ao que manda a tradição. As
instituições funcionam.
O poder
voltou para seus detentores tradicionais: homens brancos, ricos e
conservadores. Homens de religiosidade rígida e moral flexível. Homens de
contas suíças e política hondurenha, como manda a tradição. As mulheres voltam
ao lar e os negros à senzala, como impõe a tradição.
Para conciliar
a nação e unir o país, iniciou-se à caça às bruxas contra petistas,
progressistas, “bolivarianos”, defensores dos direitos humanos, gays,
“abortistas”, “artistas vagabundos” e toda essa fauna que nunca deveria ter
chegado perto do poder. Estão fora, como sempre foi na nossa normalidade
democrática. Talvez sejam presos, talvez torturados, como reza nossa mais bela
tradição.
Na
Esplanada, os ministros, na falta de ideias e propostas, dedicam-se a “rever
tudo o que foi feito”. Não fazem; reveem o que foi feito. Editam e reeditam a
mesma medida provisória várias vezes. Fazem e desfazem ao mesmo tempo, num
confuso ioiô cultural. Desfazem até o que eles mesmos fizeram. Esse governo não
governa. Esse governo desgoverna. Como era a tradição. Como era normal.
Fazer,
mesmo, só o déficit monumental. Deram a si mesmos um enorme cheque em branco
para evitar as acusações que eles mesmos utilizaram. À população darão os
tradicionais e sombrios pacotes de maldades. Tudo como esperado.
No
Senado, prepara-se o rito sumário do julgamento de cartas marcadas iniciado por
Eduardo Cunha por vingança política. Segue-se escrupulosamente o rito, faz-se a
inescrupulosa condenação sem crime. Sem mérito, mas com muitas formalidades e
salamaleques. Como manda a tradição.
Na
Câmara, o chefão acusado por um cruel, malvado e anônimo trust
suíço continua a mandar no país, mediante seus subordinados no Planalto. Tudo
certo.
A mídia
plutocrática, antes o maior partido de oposição, volta a ser um diligente
partido da situação, defendendo os verdadeiros donos do poder. Como determinam
a tradição e a normalidade.
Após
cumprir o cívico papel de criminalizar o PT, as gavetas das instituições de
controle voltarão a se encher com processos incômodos. Como era a tradição.
As ruas
voltam a ficar vazias e as bandeiras do Brasil regressam aos baús cínicos da
indignação seletiva. Como sempre foi. As panelas tornam a silenciar em
homenagem à normalidade restaurada.
O
Itamaraty, que fez silêncio obsequioso ante o atentado à democracia, agora
dirige decibéis grosseiros contra potências imperialistas como Nicarágua e El
Salvador, que ameaçam a soberania e a imagem do golpe. Volta-se a falar grosso
com a perigosa Bolívia. Promete-se, no entanto, mansidão de trato com países
pacíficos e modestos, como os EUA. Volta-se ao normal.
Os
pobres, que haviam entrado de modo solerte no Orçamento, preparam-se para dele
sair. A pinguela para o passado prepara os cortes no Bolsa Família, no Minha
Casa Minha Vida, na saúde pública, no Prouni, no Fies, no Pronatec, nos institutos
federais, nas universidades. Afinal, a constituição cidadã e os pobres não
cabem no Orçamento. Nele cabem apenas rentistas e ricos. Como reza a nossa
gloriosa tradição de exclusão.
Os
médicos estrangeiros sairão do país, os negros e pobres sairão das
universidades, as crianças do Bolsa Família sairão das escolas. Os sem casa
voltarão às ruas, as crianças retornarão aos sinais, pobres e negros voltarão
às favelas e às filas do desemprego. Gays e transexuais voltarão á
marginalidade. Mulheres regressarão ao seu lugar. Trabalhadores deixarão a
proteção legal da CLT e voltarão à precariedade e ao subemprego. Quem foi à
classe média retornará à pobreza.
Toda essa
“herança maldita” de igualdade será revista, seguindo nossos sólidos cânones
históricos, que sempre privilegiaram os privilegiados. Como deve ser.
Os
aeroportos serão, de novo, apenas dos abastados e o poder será somente de quem
pode. Tudo voltará ao normal. Reza a tradição que o Brasil é para poucos.
Quem
entrou na Casa Grande, voltará à Senzala. Como sempre foi, como deve ser.
Não se
preocupem. No Brasil, as instituições estão funcionando.
Sociólogo, especialista em relações internacionais e assessor da Liderança do PT no Senado
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