O carnaval de
Salvador já não é de Salvador. De acordo com as estatísticas, apenas 22% dos soteropolitanos
participam dele e de modo desigual, pois muitos participam da festa sem
festejar, ou seja, trabalhando em condições mais que precárias a espremerem-se
pelas ruas, vendendo cerveja, petiscos miúdos e enfeites ou ainda catando latas
dia e noite para receber alguns trocados das empresas de reciclagem.
Famílias inteiras de
trabalhadores autônomos a dormir na rua, sacrificando-se para obter um pequeno
aumento de suas rendas com um inseguro comércio. Para isto fazem vigília no
tumulto carnavalesco, dormem pelas manhãs na promiscuidade e na sujeira, nas
calçadas ou nos escassos gramados, entre bêbados e lixo, ou em barraquinhas
improvisadas que tomam as calçadas.
Há o turismo que enche os hotéis, há também os promoters, donos de blocos e de
camarotes, há as cervejarias e seus propagandistas. Os trabalhadores
qualificados do carnaval têm seu ganho muito suado… quando não levam calote,
como acontece frequentemente com músicos contratados pela prefeitura, cujas
queixas ecoam por meses na imprensa soteropolitana.
Dos abadás, 80% são vendidos para turistas,
para gente de fora, consistindo em mais uma evidência de que o famoso carnaval
de Salvador já não é de Salvador.
É a maior e mais
descarada das mentiras dizer que o carnaval de Salvador é uma festa popular que
é festa do povo para o povo. É coisa nenhuma! Carnaval
virou festa para meia dúzia de gatos pingados e cheios da grana que se
esgueiram nos camarotes com suas expressões de nojo quando voltam o olhar para
a ralé presa ao chão.
Os direitos
básicos de quem mora na área carnavalizada são eclipsados, suspensos,
suprimidos, apagados ou violentamente restringidos por longo período, como se
isso tivesse alguma base ética ou jurídica, como se fosse compatível com a
democracia, a liberdade, a decência, como se fosse coisa normal.
Numa cidade em que a mobilidade urbana
é complicada, o direito de ir e vir dos moradores dessa parte da orla
marítima e de outros trechos da urbe soteropolitana, se vê severamente ainda
mais limitado por longo tempo. O sono é proscrito para muitos. O sossego fica
proibido para quem mora ali.
Quem não quer
ensurdecer que se mude. E se quer paz, dane-se. É carnaval! Quem não deseja ver
danificada sua casa, seu prédio ou seu estabelecimento de comércio, providencie
tapumes e arque com os gastos, pois o poder público não tem nada com isso.
A criatividade e a
beleza, o humor, a crítica, a inteligência, são ainda encontráveis (cada vez
menos) no carnaval de Salvador, mas não no espaço que se considera o mais
privilegiado dessa folia. Os blocos afros continuam belos, o Ilê Aiyê e os Filhos de Ghandi ainda encantam. Há graça
nas Muquiranas e no "ideológico" Mudança do Garcia.
Muitos foliões passam longas horas a caminhar de um lado para o outro, à espera de que surja a estrela e dê seu show, fazendo-os agitar-se quase mecanicamente. Seja como for, os donos da folia insistem em que o carnaval é o suprassumo da cultura soteropolitana. Também há quem afirme que a sujeira e o barulho “fazem parte” da cultura dessa mesma cultura. Mas o povo de Salvador com certeza não merece o insulto.
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